domingo, 29 de maio de 2011

Leitura Gratuita - Do Livro "Contos Urbanos" - 1º Conto - O Mensageiro do Coletivo




O Mensageiro do Coletivo (Capa e Ilustrações de Yuri Alves, Revisão Ortográfica de Janete Schreiber do Nascimento, Diagramação Faustino Alves Filho.)


Bancos um e dois: Duas senhoras de melhor idade conversam animadamente sobre sua agitada vida sexual.
— Meu cabelo fica todo amassado com esse vento. Meu secador quebrou e não consigo sair de casa sem lavar os cabelos.
— Sabe que eu não consigo lavar o cabelo pela manhã? O Tilôncio acorda se eu ligar o secador e fica me enchendo o saco. Aí, fico mal o dia todo.
— Nem me fala. Não consigo levantar de manhã sem fazer barulho. O meu velho também reclama do barulho do secador, que queimou. Depois de me foder a paciência a noite toda, ainda quer reclamar. Fica me agarrando para “fazer de conta” e, quando eu resolvo encarar, cadê o homem? Ainda quer reclamar do secador... Que queimou.
— Não me diga! Vou te ensinar uma simpatia. Pega as cuecas do teu velho. Tem que ser cueca usada, antes de lavar. Não pode ser suja, hein, só usada. Compra um galo vermelho. Tem que ser vermelho porque é a cor da paixão, do fogo. Veste a cueca no galo e amarra bem para não cair. Ele tem que usar a cueca por sete dias. Depois tira a cueca do galo e enterra em um local úmido onde ninguém vai pisar. É batata. Teu velho vai ficar tinindo. Faz e depois me conta o resultado. Tenho certeza que tu não vai te arrepender.
— Será?

Bancos três e quatro: Um adolescente de cabelos compridos, caídos nos olhos, baba dormindo escorado na janela. Na mão direita, uma rosa vermelha murcha e, na esquerda, o troco da passagem. Olhos de quem chorou muito.

Bancos cinco e seis: Uma senhora com uma garotinha no colo. Tudo indica que se trata de avó e netinha. A menininha está segurando um ursinho de pelúcia comprado no camelô, com uma orelha rasgada onde ela enfia o dedo e vai retirando a lã de dentro. A senhora, distraída, olha pela janela. Ao seu lado, um senhor de terno observa os movimentos da garotinha e se mantém sem expressão. A cada bucha que a garotinha retira de seu ursinho, agora com um afundamento em cima do olho esquerdo, o homem a olha nos olhos. Ela o encara com desafio. A chupeta encobre metade de seu rosto gorducho. O cabelo loiro encaracolado deixa cair uma mecha em seu olho esquerdo fazendo-a piscar sistematicamente. A senhora, percebendo o olhar do homem, abraça a menininha cruzando os braços e trazendo-a mais para si. O homem a olha com desdém e volta sua atenção para frente do coletivo.

Bancos sete e oito: Um casal discute a saúde da mulher.
— Quando será teu exame?
— Sexta.
— Está te sentindo bem?
— Estou. Só um pouco cansada.
— Eu vou pedir para sair mais cedo, para te buscar. Tua mãe vai junto. Não vai?
— Vai. Acho que lá pelas seis horas vou estar liberada.
— Certo. Vou chegar cedo. Está preocupada com o resultado?
— Até que não. Acho que a palavra certa é conformada.
— Não fala assim! Não vamos nos conformar. Seja o que for, vamos tratar, e tu vai ficar boa.
— Certo! Me engana que eu gosto. Tu sabe que não tem mais volta. Não fica tentando me fazer acreditar em algo que nem tu acredita.
— Não é assim. Quantas pessoas tu sabe que já ficaram curadas?
— Na minha situação? No estágio que essa droga está? Com o dinheiro que nós temos? Sinceramente? Nenhuma.
— Tá, tá! Mas nós vamos conseguir. Tu vai ver.
— Tudo bem. Eu sei que vai ficar tudo bem. Não te preocupa. Eu estou bem. Não vamos mais discutir sobre isso.
— Tá.
— Vai me pegar às seis?
— Vou. Quer alguma coisa?
— Quero. Me traz flores.

Bancos nove e dez: Uma jovem muito bonita olha perdidamente através da janela, segura firme, com as duas mãos, uma bolsa de tecido, muito usada e aparentemente cheia. Perdida em pensamentos.
— “... será que ele vai me aceitar? Não posso correr o risco de dar errado. Bem que mamãe me avisou. Mas, na hora do tesão, não tem jeito. Naquela hora...com aquela chuva, buscar camisinha onde? Droga de chuva, choveu na minha barriga. Encheu minha barriga. Vai ser tão bonitinho. Loirinho ou moreninho? Será que vou ser uma boa mãe? Uma coisa é certa; não vou ser igual à minha. Será que ele vai me aceitar?...”

Bancos onze e doze: Dois garotos estão aos puxões para ficar na janela.
— Me deixa ficar na janela. Tu sabe que eu vomito.
— Tu sempre quer ficar na janela. Tu não vai vomitar, porque não comeu nada antes de sair, e a mãe já te deu aquele remédio fedorento.
Do banco de trás a mãe grita para os dois,:
– Júnior! Paulinho! Fiquem quietos. Júnior! Tu não vai passar mal. Fica tranqüilo. Paulinho! Mais duas paradas e deixa teu irmão sentar na janela.
— Viu? Viu? Mais duas paradas.
— Ah, vai... !
— Uma... Duas. Me deixa sentar na janela.
— A mãe disse duas paradas, não paramos nenhuma vez. Espera as duas paradas.
— Mas já passou duas paradas! Mããããeee! Já passou duas paradas.
— Nós não paramos. A senhora disse duas paradas. Não paramos nenhuma vez. Não teve paradas. Não dou a janela.
Do banco detrás:
– Paulinho, meu filhinho querido! Se não der a janela pro teu irmãozinho, vou esconder tua roupa de cowboy e tu vai ser, a partir de hoje, o cavalo. ENTREGA A JANELA PRO TEU IRMÃO, FILHO DE UMA P... Crianças... Lindas... Dormindo.

Bancos treze e quatorze: Jovem casal, vivendo as loucuras de uma paixão recém chegada a seus corações.
— Claudinho, me deixa pôr o anel... Deixa... Deixa...
— Clara Maria, tu não estás vendo que estás a machucar o meu dedo? O anel é muito pequeno. Não dá.
— Dá, sim. Claro que dá. Deixa, deixa, deixa.
— Amorzinho, olha só! O teu dedinho é um mimo, coisa mais fofinha. Mas o meu dedo é grosso, olha só! Não dá, não cabe.
— Claudinho, eu ganhei esse anel do meu bisavô, mas é de homem. O coitado do velhinho não sabe mais diferenciar o que é de homem ou de mulher. Ele nem sabe mais o que é mulher. Por isso quero te dar... O anel. Não vou jogar fora ou entregar para outra pessoa. Deixa eu colocar no teu dedo! Deixa! Deixa! Deixa!
— Porra, mulher! Já te falei que não dá. Olha aqui, ó, tá vendo? Não entra, não dá, não dá. Vou jogar essa merda pela janela se tu não parar!
— Claudinho! É do meu Biso. Snif, snif, snif.
— Ai, meu saco! Dá isso aqui.
—... Não, no mindinho não vale.
— Clara Maria, Clara Maria, não me faz te arrebentar! Pega isso de volta.
—...
— Claudinho?
— O quê?
— Me deixa colocar o anel! Deixa! Deixa! Deixa!

Bancos quinze e dezesseis: Mãe dos dois garotos do banco onze e doze.

Bancos dezessete e dezoito: Dois rapazes voltam do trabalho e comentam a festa de despedida do chefe.
—Tu viu a mulher dele?
— Aquilo era mulher? Pensei que era uma tsunami.
— Cara, que coisa mais feia!
— Bah! Nem me fala. E a calça dela? Atolada até o útero.
— Pensa que é gostosa.
— Pior, pensa que é gatinha.
— E a filha?
— Bah! A filha é muito da gostosa.
— Nem me fala. Acho que ela me deu bandeira.
— Ah! Pára! Nem que tu fosse o último homem da terra. Aquilo é mulher para outra classe.
— É, né? Acho que me enganei. Também. Eu já tava tortinho.
— Tu ainda tá tortinho.
— É, né?
— Não vai perder a hora amanhã, né?
— Não vou, não. A mãe me acorda. Pra onde ele vai?
— Quem?
— O chefe.
— Ah. Não sei.
— Ãh-hã! Mas que filha.
— É.
— Vou dormir.
— Tá.


Bancos dezenove e vinte: Um casal de uma classe social um tanto elevada para o local onde estão conversam naturalmente.
— Eu vou descer na clínica e, mais tarde, pego um táxi até a natação do Tadeu. Vou chegar um pouco atrasado para a reunião, mas tudo bem.
— Eu não vou te perdoar nunca, Moacir Claudionor. Onde já se viu deixar o carro estragar justo agora que o meu está na revisão! Tem que manter ao menos um funcionando, né?
— Pára de reclamar, Helena Joaquina. Não se deixa algo estragar. Simplesmente estragam. E, depois, que mal tem em pegarmos ônibus uma vez na vida?
— É isso mesmo, uma vez na vida, pois, se tiver outra vez, tu não entra vivo nele. Por que não fomos de táxi?
— Porque eu quero ver pessoas diferentes. Quero sentir o que acontece na nossa volta. Quero saber o que está se conversando publicamente.
— Vou te dizer uma coisa, Moacir Claudionor! Essa tua mania de ser socialmente correto está acabando com a gente. Onde já se viu? Dar um rancho para o jardineiro! Ele nem pediu, talvez até se ofenda. Já pagamos um salário muito alto para ele. Não tem que dar essas regalias.
— Vou aumentar o salário dele.
— O quê? Pára o mundo. Pára o mundo, que eu quero descer. Meu marido enlouqueceu. Ele quer consertar todas as injustiças do mundo.
— Não exagere Helena Joaquina. Não estou fazendo nada de mais.
— Não, não está fazendo nada demais. Já deu o Gringo para o vizinho.
— O Gringo era um buldogue caduco. Só servia para fazer buracos.
— Mas custou caro, muito caro. Ainda foi enrolado no meu cobertor de pele de lontra, importado. E o Nestor, então?
— O Nestor não foi tão caro. O menino tinha acabado de perder seu papagaio. Fiquei comovido.
— Mas o Nestor é um periquito.
— Da Austrália.
— Então? Não é papagaio.
— É como se fosse.
— Moacir Claudionor, de quem foi a idéia de entregar ao pedinte da terça todos os ternos de linho que estavam no armário 15?
— A idéia foi do Tadeu. Com todo o meu apoio. Impus a ele que só ganharia o carro novo no final do ano se fizesse uma boa ação. Ele então sugeriu dar meus casacos. Eu já não usava mais mesmo. E ele fez melhor. Acertou com o pedinte da segunda para vir mais cedo. Assim pode pegar o que a Claudinete joga fora, das sobras do “findi”. Esse guri vai longe.
— Moacir Claudionor... Ainda acabo contigo.

Bancos vinte e um e vinte e dois: Abraçado a uma guitarra que está com duas cordas arrebentadas: a segunda e a quarta. Descansa a cabeça no braço do instrumento um jovem músico. Pelas roupas, aparenta ter saído de um show de punk-rock. Tênis com os cadarços abertos e aparentando ser o único tênis usado nos últimos anos. O cabelo nos olhos encobre metade do rosto e não lhe deixa ver o que está à sua volta. Pensativo, olha para o chão, contando as listas antiderrapantes do piso.

Bancos vinte e três e vinte e quatro: Dois amigos conversam animadamente sobre coisas da vida.
—... E o teu time?
— Não quero saber.
— Eh! Que é que há? Só perguntei.
— É! Pois não devia ter perguntado.
— Tá bom. Eu sei que estão mal. Mas não é pra tanto.
— Dá para parar de falar? Não quero conversar sobre futebol hoje.
— Tudo bem, tudo bem... Soube o que aconteceu com o padre Fúlvio? Pegaram ele com umas guriazinhas atrás da Igreja.
— Pra que falar do Padre? Tu não vivia defendendo o Padre? Tu não era amigão dele? Pra que ficar falando dele agora que descobriram um monte de podre do coitado?
— Poxa, mas tu tá demais, hoje, hein? Certo. Tu tem razão. Não vamos chutar cachorro morto. Quem me falou foi dona Nilza. A Janete, vizinha dela, era uma das gurias. E, cá pra nós, aquela guria é muito gostosinha. Eta Padre de bom gosto!
— Vem cá. Tu tá com problema de ouvido? Precisa ir ao médico. Eu acabei de falar que não quero falar sobre isso. O que tu tá querendo? Me irritar? É isso? Quer me irritar?
— Calma, calma. Não vou mais falar do Padre. Nem conheço Padre nenhum mesmo. Pode deixar... Nada.
— Tá bom! Não vamos brigar por causa disso. Só quero ficar quieto.
—...
—...
— Sabe quem bateu lá em casa ontem? O vereador...
— Pára! Pára! Pode parar. Política. Política, não!
— Tá bom, tá bom! Vou sentar lá atrás. Que coisa!

Bancos vinte e cinco e vinte e seis: Duas mulheres jovens, bem arrumadas, desconhecidas, no mais absoluto silêncio. Uma olha fixamente para frente do corredor e a outra mantém o rosto virado para a janela. Subiram juntas na mesma parada e sentaram no mesmo instante. Mantêm seu silêncio desde que subiram.

Bancos vinte e sete e vinte e oito: Uma senhora conversa com um senhor sobre os acontecimentos que antecederam sua entrada no coletivo.
— O senhor não imagina o que me aconteceu agora há pouco!
— É! Não imagino. O que aconteceu?
— Dois moleques não tentaram me assaltar? Dois moleques. Acho que tinham menos de quinze anos. O senhor não acha uma barbaridade isso?
— É! Não acho. A senhora ficou bem? Eles conseguiram levar algo?
— Não. Claro que não. Imagina se eu vou deixar dois pirralhos me passarem a perna. Nunca. Dei uns tapas e eles saíram correndo. O senhor não acha que fiz certo?
— É! Não acho. Eles estavam armados?
— Ah! Mas o senhor não conhece esses moleques de gangue mesmo!
— É! Não conheço.
— Eles chegam azucrinando e ganham só na gritaria. Começam a gritar que é um assalto e contam com o susto da vítima. Até a gente perceber que são umas crianças desarmadas que estão nos roubando, já nos arrancaram a bolsa e foram embora.
— Foi assim que lhe atacaram?
— Já me roubaram assim uma vez. Mas não me pegam mais. Boto todo mundo pra correr. O senhor nunca foi assaltado?
— É! Não fui. Quem sabe um dia.

Bancos vinte e nove e trinta: Um dos amigos do banco vinte e três e vinte e quatro.

Bancos trinta e um e trinta e dois: Um velho está sentado com o corpo inclinado para frente, apoiado com as duas mãos em uma bengala de bambu, usa um chapéu de palha com as abas corroídas pelo tempo e mostra, através dos visíveis calos das mãos, que se trata de um trabalhador do campo. Com sua vida desgastada pela labuta, está indo ao hospital central para visitar sua filha que esteve doente por muito tempo e, devido à colheita que não podia atrasar, ele não pôde vê-la nenhuma vez. Estava apreensivo, sem saber como ela estava de saúde.

Bancos trinta e três e trinta e quatro: No lugar dos bancos trinta e três e trinta e quatro, somente as marcas no chão. Os furos onde estavam os parafusos dos bancos, deixam ver o asfalto que passa veloz por entre as rodas de pneus carecas.

Bancos trinta e cinco e trinta e seis: Vazios.

Bancos trinta e sete e trinta e oito: Duas freiras rezam concentradas.
O coletivo está a cinco paradas do convento onde as freiras que estão rezando irão descer. As orações são para todos que estão no ônibus e fora dele. Mas, principalmente, para o motorista. Afinal de contas, nossas vidas estão em suas mãos. Ele é mais um dos incontáveis deuses que surgem em nosso dia-a-dia.
— Desce! — grita o cobrador.
— Sobe! — grita o cobrador. — Um passinho à frente faz favor.

Um homem maltrapilho pára na roleta e mexe nos bolsos. O cobrador olha curioso para o sujeito.
— Um passinho à frente, faz favor.
A frase sai automática. Ele nem precisa pensar no que vai dizer. Sempre que chega alguém à sua frente, dispara um gatilho e a frase sai sozinha. ¬“Um passinho à frente, faz favor.”.
O homem continua mexendo nos bolsos e retira vários papéis, algumas fotos e alguns objetos em papel amassado de embrulhar pão. Mas dinheiro não aparece. Olha com olhos de medo para o cobrador. Medo de passar vergonha. De ser repreendido em voz alta. Medo de que todos saibam que sua pobreza é maior do que aparenta. Se é que isso é possível.
— Eu estou sem trocado.
— E agora? O que o senhor quer que eu faça? Se o senhor não pagar, eu tenho que pagar. Sai do meu bolso.
— Posso ficar aqui atrás? Assim o senhor não terá prejuízo.
— E se o fiscal sobe? Como eu fico? Perco meu emprego.
— Entendo. Vou descer, então!
Quando disse isso, o homem passou os olhos pelos olhos do cobrador, que até então falava remexendo nas gavetas. Por um instante, o cobrador pensou ter visto os olhos de seu pai, que não via há quinze anos. A última vez que conversaram eles quebraram os pratos. Ele foi embora acusando seu pai de ter fraudado sua pequena empresa e levado toda sua família à ruína. Depois de cinco anos, descobriu que estava errado. Procurou seu pai por algum tempo, sem sucesso, e desistiu. Não, aquele senhor não tinha nada a ver com seu pai, mas seus olhos...
— Senhor!
— Pois não!
— Pode passar.
— Mas e o seu emprego?
— Não se preocupe. Mas não pense que sou bonzinho. Não vou facilitar da próxima vez.
— Tudo bem. O senhor será recompensado.
— É! Tô sabendo.
O homem passou pela roleta e parou diante das freiras dos bancos trinta e sete e trinta e oito. Elas o olharam com certo nojo, pela sujeira e pelas roupas rasgadas que usava. Nem mesmo seus olhos tristes foram capazes de arrancar um olhar mais fraterno delas. Ele retirou uma pequena cruz de madeira do bolso e estendeu a mão para entregar a elas. A mais nova olhou para a mais velha em incógnita, sem saber o que fazer. A mais velha olhou para os pés do homem, que usava chinelos de dedos, e acenou com a cabeça para que sua colega pegasse a cruz. Quando tocou a pequena cruz, a freira sentiu um arrepio percorrer seu corpo e subitamente uma sensação de bem-estar se apossou das duas.
Uma senhora que estava na calçada alguns metros à frente do ônibus, com uma criança pela mão, se descuidou e a criança correu para atravessar a rua. O motorista freou bruscamente o ônibus, sacudindo todos os passageiros em seus lugares e o desviou para fora da estrada na tentativa de evitar o atropelamento. Subitamente, um brilho muito forte surgiu na frente do coletivo, como se o ônibus tivesse caído em um mar de luzes ou, talvez, algo tivesse explodido lá fora. O homem maltrapilho tentou se segurar, mas cambaleou e enganchou o pé nos parafusos dos bancos trinta e três e trinta e quatro, e um de seus chinelos de dedos escapou de seu pé, deslizando pelo corredor. O homem sentou-se obrigatoriamente ao lado do velho dos bancos trinta e um e trinta e dois. Seu chinelo chamou a atenção de todos os passageiros que, agora, estão agitados pela freada.
Ao passar pelos bancos vinte e nove e trinta, um dos amigos acompanhou o chinelo com os olhos por um tempo. Levantou os olhos ao perceber que estava na direção dos bancos vinte e três e vinte e quatro, onde estava seu outro amigo. Os dois acharam graça do chinelo deslizando pelo corredor do ônibus e trocaram um sorriso. O amigo dos bancos vinte e nove e trinta levantou-se e sentou-se novamente ao lado do amigo dos bancos vinte e três e vinte e quatro.
— Vamos ao Grenal domingo?
— Só se for meio tempo em cada torcida.
— Fechado.
O homem olhou o velho dos bancos trinta e um e trinta e dois nos olhos e este sorriu amigavelmente.
— Sua filha está bem.
Falou o homem colocando a mão sobre o ombro do velho, que teve certeza, sem saber por que, que o homem estava falando a verdade. Sentiu muita paz em seu coração.
O chinelo desliza e pára em frente ao banco vinte e cinco e vinte e seis. As duas senhoras olham no mesmo instante para o chinelo e começam a dar risadas a todo o pulmão. Sem entender muito bem o motivo, olham-se e dão gostosas gargalhadas.
Mais um solavanco e o chinelo desliza novamente parando em frente ao banco vinte e um e vinte e dois. O rapaz que está sentado olha o chinelo demoradamente, então se abaixa e o pega. Ao se levantar, percebe que o homem maltrapilho está ao seu lado. Ele estende a mão e entrega o chinelo ao homem que, em agradecimento, lhe dá um forte e demorado abraço.
— Muito obrigado.
O rapaz sentiu uma força estranha em seu peito. O homem lhe entregou um pequeno pacote. Algo embrulhado em papel muito amassado. O rapaz se espanta com a beleza e o brilho da pequena palheta azul. Parecia vidro. Toca em sua guitarra, nas cordas que sobraram, e percebe uma melodia totalmente nova. O restante da música lhe vem à cabeça, mas ele precisa do grupo todo para ensaiar. Fica tomado por uma enorme felicidade ao imaginar a alegria de sua mãe, que acreditava muito em seu sucesso e pagava caro para sustentá-lo até que ele lhe pudesse retribuir, ao ouvir tal canção.
— Tua mãe sente muito orgulho de ti. As coisas nem sempre acontecem pelos caminhos que gostaríamos, mas acontecem. Fica tranqüilo.
O homem larga o chinelo no chão e levanta a perna calmamente para calçá-lo. Porém, antes de colocar o pé no chinelo, mais uma freada faz o chinelo correr novamente e parar em frente ao casal dos bancos dezenove e vinte. O homem se aproxima calmamente enquanto o casal fica a observá-lo. Antes de pegar o chinelo, o homem olha fixamente para a mulher e estende o braço em sua direção.
— A senhora tem uma moeda?
A mulher está com medo. Não sabe por quê. Nem entende a falta de reação de seu marido. Sente um medo inexplicável. Vontade de sair correndo, mas, ao mesmo tempo, o olhar daquele homem é irresistível, não dá para fugir, não dá para negar. Sem tirar os olhos daquele mendigo, retira algumas moedas da bolsa e larga na mão espalmada do homem, que agradece com um aceno de cabeça e sorri. O homem continua tentando pegar seu chinelo, enquanto a mulher desaba em um choro convulsivo. O marido, que não entende nada do que estava acontecendo, não consegue dizer palavra. Ela simplesmente chora feito criança, lágrimas de esvaziar a alma.
Um chinelo sujo, faltando um pedaço no calcanhar devido ao longo tempo de uso, corre no corredor para lá e para cá. As pessoas não conseguem tirar os olhos do chinelo ou de seu dono, que anda pelo corredor do ônibus tentando buscar seu pé de calçado.
O chinelo pára diante da senhora dos bancos quinze e dezesseis, e o homem senta-se ao lado da mãe dos garotinhos. Os dois garotos dos bancos onze e doze olham-se, fazem uma careta engraçada e começam a rir baixinho. A mulher se espreme na parede do ônibus para evitar contato com as roupas sujas do homem. Ele lhe sorri. Um sorriso manso, inocente, a deixa em dúvida devido à tamanha simpatia. Sente que aquele homem pode ser bom, generoso, perde a vontade que estava de se afastar e lhe arrisca um sorriso amarelo. O homem retira do bolso duas pedrinhas. Uma azul e uma verde. Entrega para a mulher e lhe explica que a azul deve ser entregue ao Júnior e a verde para Paulinho. Ao descerem, eles deveriam lhe entregar as pedrinhas de volta e ela deveria guardá-las até que alguém lhe pedisse as pedras. Elas eram a senha para o acesso em algum lugar.
— A senhora ainda vai entender a beleza de ser criança e, embora esteja muito triste, a senhora será recompensada no final com a felicidade do entendimento.
Disse isso e se levantou em busca do seu chinelo. A mulher ficou muda observando aquele homem, mendigo, pensando nas suas palavras que cravaram em seu cérebro como uma lâmina eterna que, ela sabia, não sairia mais dali.
O homem senta ao lado da jovem do banco nove e dez. Ela lhe sorri em cumprimento. Ele olha para a altura de seu ventre e pega sua mão entre as dele. A moça não está com medo, nem com nojo. Sente apenas uma calma gostosa. Paz. Muita paz.
— Aquele rapaz está precisando de sua ajuda. Ele também quer lhe contar um segredo.
O homem falou apontando com a cabeça para o banco três e quatro. A moça lhe sorriu novamente concordando com a cabeça. Olhou na direção do jovem indicado, mas só conseguiu enxergar os cabelos do jovem que dormia escorado na janela. O homem levantou-se e ficou olhando para a moça, como a esperar que ela fosse até o jovem. Ela entendeu e dirigiu-se até o banco três e quatro.
— Com licença, posso sentar?
A moça perguntou ao rapaz, que a olhou por baixo dos cabelos e se ajeitou no canto do banco abrindo espaço para que a moça pudesse sentar-se.
Ele fica observando a moça durante algum tempo e um sentimento forte invade seu peito. Sente que precisa falar com ela, abraçá-la. Já não importa mais a traição que sofreu há pouco. Não pensaria mais em vingança. Estende a mão e lhe oferece a rosa que, para seu espanto, agora está de um vermelho radiante, brilhando em forte vida, como seus corações.
O homem parou diante do banco sete e oito e ficou observando o casal que estava em silêncio, olhando para fora. A mulher percebeu a presença do homem e cutucou o marido com o cotovelo. O homem se curvou um pouco mais e falou para a mulher:
— A vida lhe deu um presente que a senhora soube cuidar muito bem durante dezessete anos. Agora, as coisas mudaram. Não fique triste. Tudo será como deve ser. As pessoas sempre se lembrarão daqueles que lhes fizeram o bem. Por toda a eternidade.
Dito isso, se afastou.
— Quem é? Tu conhece esse cara? —perguntou o marido.
— Não, claro que não. Cada um que me aparece!
A mulher ficou pensativa olhando pela janela. O marido curvou-se para enxergar seus lábios, onde jurou ver um sorriso bobo. A mulher disfarçou, mas seus olhos não mentiam. Algo mudou dentro dela.
O homem se aproximou do banco cinco e seis e o sujeito de terno levanta a cabeça para ver quem estava ao seu lado. Subitamente começa a tremer, seu rosto perde a cor e suas mãos não se firmam por mais que ele se esforce em segurá-las entre os joelhos. Ele levanta a cabeça como a pedir ajuda ao homem que acabara de chegar, mas seu rosto fica sério ao ver a expressão do maltrapilho. Em toda a sua serenidade, ele transmitiu algo ameaçador ao homem sentado. O homem do terno se levanta, pede licença, mas, antes de ter uma resposta, empurra o mendigo para trás e sai correndo em direção à porta da frente. Grita com o motorista para que pare o coletivo. O motorista não quis parar fora do ponto, deixando o homem muito mais nervoso. Ele se agarra no banco do motorista e começa a sacudir violentamente, olhando a todo momento para trás para ver onde o mendigo estava, obrigando o motorista a parar. A porta se abre e ele salta na calçada. De dentro do ônibus, percebe-se o suor a escorrer por sua testa. O homem tropeça a cada três passos e segue seu caminho, assim, cambaleando sobre uma neblina que, agora, cobre a calçada, não permitindo que vejam seus pés. Ouvem-se pequenos sons de cascos.
O maltrapilho senta ao lado da mulher e a garotinha lhe estende a mão oferecendo o ursinho com um buraco na orelha. O homem empurra alguns chumaços de lã que estavam caindo da orelha do ursinho e alisa a cabeça de pelúcia. A garotinha sorri abertamente deixando a chupeta cair e revelando dois dentões na gengiva de cima. A mulher observa o homem sem saber o que dizer. Este se levanta e pega seu chinelo que está ao lado, coloca no pé e olha curioso para o banco um e dois.
— As senhoras viajam sempre juntas, não?
— Sim, quase sempre.
— Os amigos são partes de nós, nos acompanham sempre, até quando não estão mais aqui. Boa viagem!
O motorista olha o estranho passageiro e sorri com cumplicidade. O homem maltrapilho fica em pé nos degraus da porta, aguardando o ônibus parar. As pessoas estão todas em silêncio. Na parte de trás da cabeça do mendigo, surge a ponta de um tecido branco, alvo, que estaria em baixo de sua roupa suja. Seu cabelo visto detrás, não parece mais tão sujo. O homem volta-se e olha para dentro do coletivo. Seus olhos azuis roubam toda a atenção devido à forte luz que, aparentemente, sai deles.
O ônibus pára e ele desce. Acena para o motorista, que, ao acenar de volta, deixa aparente sua manga larga e algumas pontas de penas descem por sua roupa. Todos os passageiros percebem. Alguns se olham e sorriem, outros enchem os olhos d’água, mas se resignam. As senhoras olham-se e trocam um sorriso calmo, de quem sabe onde está e que está seguro, por toda a eternidade.

Fim