domingo, 28 de agosto de 2011

Leitura Gratuita - Contos Urbanos - Conto 4 " João coração de Criança "



Em uma casa na beira da estrada RS 20 no distrito de Itacolomi, vivia João, um menino de doze anos com muitos sonhos em seu pequeno coraçãozinho. De uma família pobre, João nunca teve nenhum luxo em sua casa. Nem brinquedos comprados em lojas. Brincava com bonecos feitos de galhos de árvore: os mocinhos não tinham casca e os bandidos eram os mais cascudos. Às vezes, seu pai fazia alguns carrinhos de lata de azeite e rodinhas de cabo de vassoura. João guardava esses carrinhos para brincar quando alguém viesse visitá-lo. Nos dias normais, brincava com seu trem de rolos de latas cheias de areia. Aprendeu, desde cedo, a nadar, costumava se refrescar no riacho que cruzava parte do terreno da pequena chácara, que a família mantinha.
Filho único, João tinha também como companhia a Carijó, pequena garnisé que ele ajudou a sair do ovo e, desde então, não saiu mais de sua volta. Tinha o Alarido, canário da terra que seu pai trouxe da cidade para alegrar João com seu canto. Mas João não tinha ainda se acostumado a ver Alarido engaiolado. Dava nó na garganta. Mas seu pai nunca soube disso. João jamais iria desapontar seu pai por algum motivo. Fosse o que fosse. Mas a maior companheira de João era a Dolli, cadelinha Fox, mestiça que apareceu por lá quando ainda era bebê. João cuidou da bichinha com tal zelo que ela passou a fazer parte da família.
Dolli. Assim mesmo. Com dois eles. João repreendia quem não falasse o nome certo. Dol-li, esticando um pouco o ele.
Dolli era muito educada. Nem precisou ensinar. Ela trouxe educação do berço. Não latia dentro de casa, pedia para sair quando precisava fazer as necessidades e, quando queria algo para comer, sentava com as duas mãozinhas para cima e olhava com cara de pidona. João e Dolli se entendiam só no olhar. Quando João estava triste, Dolli ficava ao seu lado, triste também, até João melhorar. Então, corria em volta de si mesmo, dando saltos enormes. João acreditava que era para festejar.
Os amigos da escola onde João estudava não eram muito de brincar com ele. Nenhum dos cinco. João era muito tímido. Não ficava à vontade com outras pessoas, que não fossem os de casa. Para conversar com João, só depois de conviver com ele mais de ano. Até lá, era melhor se acostumar a ter um parceiro que não abria a boca para nada. As respostas obtidas de João não passavam de monossílabos. Então, seus amigos preferiam os mais agitados, menos inibidos.
Menos Rosa. Rosa não era como os outros da escola. Ela tinha um olhar diferente para João. Deixava-o mais encabulado do que qualquer outra coisa. Rosa era a mais bonita, a mais educada. Isso aos olhos de João. Já o Marreco, o maior da turma, não concordava com isso. Para ele, Rosa era uma guria para se pegar atrás da igreja, que ficava ao lado do colégio. Um dia, em uma festa de São João, depois de comer muita pipoca e tomar litros e mais litros de suco de uva, João foi “desaguar” atrás do matinho, e, para seu espanto, lá estava Marreco tentando pegar Rosa na marra. João teve até corte na urina. Ficou olhando sem saber direito como agir. Sua vontade era de bater em Marreco até o fazer cacarejar igual à Carijó. Mas, e a coragem? Marreco dava dois dele na altura e, embora magrão era bem mais forte. Mas o que segurava João não era medo; era o risco de fazer feio na frente de Rosa. Se Rosa não estivesse ali, azar.
Ao ver que João estava parado olhando para os dois, segurando o “pintinho” pela cabeça, Marreco começou a rir e esqueceu Rosa, que aproveitou e se mandou para dentro da barraca de seu pai. João também foi esperto o suficiente para correr enquanto Marreco piscava. Naquela noite, João não dormiu direito pensando, todo orgulhoso, no fato de ter salvado Rosa. Sim, mesmo que daquela forma meio fora de script. O fato é que a presença de João ali, naquela hora, salvou Rosa e isso bastava para inflar seu peito e fazê-lo suspirar espantando o sono para longe do mundo dos apaixonados.
Seu Tião, da quadra de areia, gostava muito da companhia do guri. João, de vez em quando, ajudava seu Tião a organizar a quadra para os times que jogavam à noite. Tinha também as “pingas” que deveriam ser colocadas de molho na bacia de pedra onde passava a água da vertente. A “pinga” ficava bem geladinha; os jogadores adoravam.
Um dia, apareceu uma escola de outra cidade para um torneio na quadra de seu Tião. Foi uma correria só para organizar tudo. Na última hora, faltou gente para completar os times. Seu Tião não teve dúvida; botou uma camiseta de futebol em João e encaminhou o guri para se posicionar na quadra. João sentiu-se o verdadeiro Rei Arthur. Aquilo não era camiseta: era uma armadura. Agora ninguém podia com João. Ele seria invencível com aquela camiseta de jogador de futebol de quadra de areia. Mas o futuro de João não estava na bola. Iniciou o jogo e, na primeira dividida, a bola espirrou e um adversário chegou antes do João e, graças à falta de qualidade dos craques adversários, o sujeito meteu o pé na pelota de qualquer jeito. A bola subiu e levou o nariz de João junto para o céu. João tentou abrir os olhos, mas a areia não permitiu. Foi um verdadeiro pandemônio. A turma do time do João queria vingança. A turma do time adversário queria desculpas, e seu Tião queria acalmar a todos. No final, deu tudo certo: o juiz expulsou o agressor, que, na verdade, era inocente, e João não teve condições de continuar na partida. Assim, os times ficaram parelhos e o jogo prosseguiu. Naquele dia, seu Tião levou João para casa e se desculpou com sua mãe pelos ferimentos do guri.
O ferimento não foi dos piores, mas, somado a um pouco de manha, levou João a ficar de cama com o nariz inchado. Não saiu de casa para brincar o dia inteiro. Não foi para a escola, fazendo com que todos se perguntassem onde estava o “tampinha”. Dolli não saiu do quarto de João, nem para comer. Foi preparado um prato para Dolli e colocado ao lado da cama de João. Quando estavam a sós, João conversava animadamente com Dolli e contava a ela os segredos de seu coração, entre os quais estava Rosa. Sempre que falava de Rosa, João, instintivamente, olhava para cima. Dolli também olhava e tentava ver no rosto de João o que ele via lá em cima, pois ela não via nada e não entendia essa expressão humana de pedir, em silêncio, ajuda aos deuses, olhando em sua direção.
Após almoçar, João ficou deitado, lendo a história de Robson Crusoé. Ele adorava o personagem Sexta-Feira. Sua mãe o chama, pois havia chegado visita. João levantou e foi à sala. Lá estava Rosa, em todo o seu esplendor. Usava uma blusa vermelha, que João adorava – tinha as mangas fofas e dava certo ar de império. Mas o que João gostava mesmo era dos joelhos de Rosa. Eram lindos, redondinhos, moreninhos. Quase nem tinham marcas, aquelas de ficar ajoelhada escovando o assoalho de madeira, para depois passar a cera quente. Rosa ajudava bastante sua mãe, mas quase não tinha marcas nos joelhos. Ela sempre usava as saias um pouco acima do joelho, para delírio dos guris da escola.
Rosa ficou a tarde inteira com João. Ele quase não acreditou. A cada movimento de Rosa, achava que ela iria se levantar e se despedir, mas não. Ficou até à tardinha. Conversaram muito. Quer dizer, Rosa falou muito, e João ouviu muito. Tomaram suco de laranja colhida na hora com bolacha sortida que sua mãe preparou. Brincaram embaixo das laranjeiras, na área da frente e molharam os pés no riacho. João tinha a nítida impressão de que Rosa estava ali para outra coisa. No fundo, ele sabia que ela gostava dele mais do que dos outros guris, mas João não conseguia ultrapassar as barreiras de sua timidez. Se Rosa ficasse assim ao seu lado, sem falar nada, João até arriscaria lha tacar um beijo. Mas, e depois? O que fazer depois do beijo? Se ela gostasse e quisesse mais, o que iria acontecer? E se ela saísse correndo e ficasse de mal? Não, melhor esperar. Talvez ele estivesse errado. Talvez ela estivesse ali apenas por solidariedade. Melhor deixar assim, na amizade mesmo. Rosa se despediu de João segurando suas mãos sem querer soltar. João foi suando frio e tremendo de um jeito que não teve solução senão arrancar as mãos dele de dentro das dela num puxão só e botar para trás das costas. João estava apavorado com aquela situação. Sabia o que ela queria. Mas não tinha condições para atendê-la. Depois que Rosa foi embora, João ficou se culpando e praguejando. Claro que se fosse o Marreco, Rosa já estaria peladinha atrás das laranjeiras. Odiava-se quando pensava assim. Não conseguia fazer nada, senão deitar em posição fetal, com Dolli ao seu lado até a dor passar.
No colégio, João não conseguia olhar Rosa nos olhos. Parecia que ela o estava cobrando pelo fracasso do dia anterior. Mas o pior estava por vir. Marreco, esperto e muito mais vivido que os dois, percebeu os olhares de Rosa para João e a timidez de João. Em uma saída rápida da professora da sala de aula, Marreco se levanta e começa a gritar para todos que Rosa estava gostando de João e que João era bebezinho demais para Rosa. João queria morrer de vergonha. Rosa não deixou barato, levantou-se e jogou tudo o que estava a seu alcance para cima de Marreco. Nesse instante, a professora entrou e todos voltaram aos seus lugares. Rosa estava chorando e a professora deixou-a ir embora mais cedo. João, com o coração querendo pular fora do peito, imaginava o que faria com Marreco quando terminasse a aula. Em sua imaginação, ele sempre vencia. Havia uma em que ele corria na frente e esperava o Marreco em cima do barrancão. Quando Marreco passasse, ele pularia em cima dele e, já com a vantagem do tranco da queda, montaria em sua barriga e bateria tanto até Marreco pedir desculpas, e todos vibrariam com sua bravura, carregando-o nos ombros. Claro que depois a notícia se espalharia e Rosa chegaria à sua casa novamente para visitá-lo, porém, dessa vez, eles namorariam no riacho dos fundos.
Ele poderia, também, já na saída da aula, chamar Marreco para briga, ali, na frente de todos. Ele sabia que os colegas não gostavam de Marreco e ficariam ao seu lado. Jogaria os livros para o lado, arremangaria a camisa e, embora Marreco estivesse rindo nessa hora, ele se jogaria furioso em cima do outro que, surpreso, não teria tempo de reagir e cairia ao ser atingido por uma cabeçada na barriga, já que no rosto de Marreco João não alcançaria se os dois estivessem em pé. Nessa versão, Rosa ainda estaria ali com eles e ficaria entusiasmada com sua bravura, dando-lhe um beijo na frente de todos e, a partir dali, todos os respeitariam mais, inclusive Marreco.
Os devaneios de João continuaram até a hora da saída. O coração acelerou mais ainda. Já fora da sala, no caminho de casa. Marreco se lembrou dos olhares e iniciou um coro de “Bebezinho” que se estendeu até João entrar em seu pátio de cabeça baixa.
João foi para os fundos do quintal e sentou-se na terra arenosa riscando, no chão, corações com seu nome e o dela.
Acordado de seu sonho por sua mãe, João apagou rapidamente com os pés os desenhos que fizera. Estavam chamando João para brincar de polícia-ladrão. João foi meio cabisbaixo. Ao avistar a turma, percebeu que Marreco não estava, e Rosa era a primeira da fila. Ao separar os ladrões da polícia, Rosa foi ladra e João foi polícia. Escolhido o ponto onde seria a cadeia, iniciou a brincadeira e os ladrões saem correndo desesperados para não serem pegos. João dá uma olhada em volta e vê Rosa dobrando a rua do riacho e ninguém atrás dela. Ele dá um salto e larga em disparada, cortando caminho por um terreno baldio para poder interceptar a ladra antes que ela atingisse a zona neutra. Rosa corria e olhava para trás, quando percebeu que João estava atrás dela. Rosa entrou em um capinzal que dava em sua cintura, diminuindo sua velocidade. João chegou mais perto e, para não perder a presa, se jogou em seus pés, abraçando os joelhos que tanto adorava. Rosa caiu com João agarrado em suas pernas. Após um minuto de reflexão, levantaram os dois. João pegou firme no pulso de Rosa, para que a ladra não fugisse, e deu voz de prisão.
— Teje presa!
Rosa sorriu e, quando João iniciou sua jornada de volta, Rosa trancou os pés. João olhou assustado para a guria, que firmou seus grandes olhos negros bem dentro dos olhos de João e, chegando bem perto do guri, fazendo-o sentir sua respiração, falou sem medo:
— Me dá um beijo.
Nessa hora separam-se os homens dos guris, os vividos dos inocentes. João, guri inocente, tímido, de vida simples, não estava preparado para a vida. Não estava preparado para o amor que insistia em brotar em seu coração. O mundo caiu em sua cabeça. Ficou aturdido, não conseguia pensar. Seu coração lhe batia nas têmporas e João sentiu suas pernas fraquejarem. Seus olhos se encheram de lágrimas, fazendo Rosa, que aguardava seu beijo, marejar também os seus. João sabia que seu grande primeiro amor estava fugindo dele por sua culpa, mas não pôde atender ao pedido de Rosa. Sua timidez era fatal e o aniquilara diante de um pedido de sua amada. João só pôde dar uma resposta
— Tu tá presa, já falei! Vamos pra cadeia.
O caminho até a cadeia foi longo por demais. Longo para João que não via a hora de largar a mão de seu grande amor para se enfiar em seu travesseiro e tentar responder às velhas questões que assombravam seu coração de criança. Por que sentia? Se não sabia o que fazer com seu sentimento?
Também foi longo para Rosa, que não entendia onde tinha errado. João não estava assim tão apaixonado por ela como ela havia pensado? E agora, para piorar, vai achar que ela é fácil demais. Acabou. Definitivamente acabou sua chance de conquistar seu amado. Ficaria, ela, à mercê de caras como Marreco? O que seria dela a partir de hoje?
No dia seguinte, Rosa não foi à aula. No outro, também não, nem no outro. Depois se soube que ela tinha mudado de cidade. Ninguém mais a viu. Talvez uma coincidência que a livrou de ver João todos os dias. De ter que sofrer uma rejeição todos os dias. Seria demais para ela. Feliz coincidência.
João continuou assistindo às aulas, mas não era o mesmo. Não brincava mais, falava menos ainda. Sua mãe o levou ao médico várias vezes, mas não descobriu o que o guri tinha. Era só tristeza, mas não sabiam o motivo. João estava sofrendo a pior dor de amor que há: a da incapacidade de enfrentar seus medos, impostos pela timidez. João, no fundo, sabia que aquilo um dia ia passar. Ele iria crescer e, certamente, iria conhecer outras gurias e que, talvez, soubesse como agir. Parte de sua timidez foi embora com Rosa a quem ele será eternamente grato, pois lhe ensinou uma lição que custou muito caro para os dois. Custou-lhes o primeiro grande amor. Jamais iriam esquecer. Um sofrimento que os preparou para outros grandes amores e que, certamente, lhes trarão muita felicidade.

Fim