sábado, 13 de agosto de 2011

Leitura Gratuita - Contos Urbanos - Conto 3 " Alagados "


Paulinho, um guri de dez anos, muito esperto para sua idade, mora em uma das bacias nascidas de acidentes geográficos em São Pedro do Caiaque. Nunca saiu daquele lugar, por sua família não ter condições financeiras e por falta de necessidade. Não tem muitos amigos, dá para contar nos dedos das mãos. Espera, um dia, poder usar os dedos dos pés também, o que certamente acontecerá logo, pois é um guri muito simpático, prestativo e inteligente.
Aos domingos à tarde, Paulinho se reúne com a turma para uma pelada no morro – único lugar plano e muito elevado em relação ao resto do lugar – O problema é quando a bola cai lá embaixo. Ninguém quer buscar. Os times ficam empurrando a responsabilidade, sempre querendo que o melhor jogador do time adversário vá buscar a bola. Assim, quando o adversário chega de volta, está sem pernas para o jogo, enfraquecendo o time. Chegaram a criar uma regra nova. Só vai buscar a bola alguém do time que está ganhando, para que o jogo fique mais equilibrado e, conseqüentemente, mais competitivo. Diante dessa nova regra, Paulinho passou a integrar o time principal do bairro, que ganhava quase todos os jogos. Não que ele seja, assim, tão bom de bola, mas é muito rápido para executar qualquer tarefa. Fica sempre na reserva e, quando a bola desce a ladeira, lá vai Paulinho correndo ladeira abaixo. Depois de buscar a bola algumas vezes, o capitão sempre lhe permite jogar alguns minutos. Mesmo porque ele já está cansado e não pode comprometer a eficiência dos companheiros de time. Paulinho corre a passos lentos para lá e para cá. Quando lhe passam a bola, encosta outro jogador de seu time e fica a menos de dois metros insistindo para que lhe passe a bola. Não podem arriscar um passe longo vindo de seus pés. Tudo para facilitar a vida do guri. Paulinho sabe disso tudo, mas não se importa. Deixa-se levar.
Zeca Chinelo é o maior amigo de Paulinho. Foi ele quem conseguiu uma vaga para o guri no time. Chinelo é bolero respeitado. Não sabia que o capitão queria Paulinho só para buscar a bola. Ficou indignado com a atitude do time. Chegou a ameaçar sair do time caso não fosse revista essa decisão. Chinelo é dono de um drible que lhe garantiu o apelido do mesmo nome. Seu drible deixa o adversário sem saber onde está. Sempre que ele aplica o “chinelo”, a galera grita em coro:
— Chinelada!
Só então o adversário percebe que foi vítima de mais um “chinelo” do Zeca Chinelo.
Domingo, dezesseis de março, Paulinho está na frente de sua casa esperando Chinelo passar e subirem a ladeira para mais um jogão de bola. Chinelo estava demorando muito. Paulinho ficou com medo de se atrasar e foi sozinho. Depois, explicaria para o Chinelo, que não iria se importar, com certeza. Da casa de Paulinho até o campo da ladeira, levam-se uns quarenta minutos, mas há alguns guris que vêm de mais longe ainda.
O jogo está prestes a começar quando o tempo fecha, as nuvens parecem estar a poucos metros de suas cabeças. Os guris saem correndo ladeira abaixo. Paulinho se lembra das recomendações de sua mãe.
“Se chover e tu estiver lá em cima, espera a chuva passar para descer. A ladeira fica muito escorregadia quando está chovendo. É muito perigoso”.
Paulinho busca abrigo na cabana de galhos que construíram para se abrigarem do sol e da chuva, quando era pouca. Pela cara do tempo, a chuva não seria qualquer coisa. Foi o céu mais apavorante que Paulinho já tinha visto. Em menos de meia hora, anoiteceu em todas as direções. O vale onde ficava a vila estava parecendo um grande caldeirão, com pessoas correndo de um lado para outro buscando abrigo. Com o peito apertado, Paulinho sofria na dúvida: descer ou ficar lá em cima? Se a chuva, que parecia ser das brabas, o pegasse no meio da descida, seria o caos. Mas, se ventasse muito forte e o abrigo não resistisse, ficaria à mercê dos raios, que eram muitos na região. Antes de Paulinho decidir o que fazer, caiu a maior tromba d’água já registrada no lugar. O guri olhou em volta e só enxergava água, muita água. Tentou ver como estava a vila lá embaixo, mas já não se podia ver mais nada. Apenas um grande tapete embranquecido. Sentiu-se no céu. Acima das nuvens. Correu para o abrigo, mas não deu tempo de chegar. O vento forte arrastou a cabana até a beira da ladeira e ela sumiu ladeira abaixo. Paulinho já não sabia onde se esconder. Seus pensamentos iam de casa, sua mãe, até a casa de Chinelo e seu irmãozinho de colo. Ele pensava se tinha dado tempo de os colegas de time chegarem em casa, pois a chuva era muita. Mal podia levantar a cabeça para enxergar onde pisar. Os pingos d’água castigavam seus olhos. Analisou de onde vinha o vento para esconder o rosto, mas as revoadas não tinham direção certa. Parecia que vinham de todos os lados. Prestando bem atenção, percebeu que tinha um lado onde o vento era mais forte. Foi, então, na direção do barranco para se proteger do vento que insistia em querer arrastá-lo. Procurou cuidadosamente um lugar seguro e se agachou. Encolheu-se o máximo que pôde para se proteger. Com o rosto coberto com a ponta da camisa, fechou os olhos e aguardou até a chuva passar.
Depois de algum tempo, a chuva foi acalmando lentamente e o vento amenizou. Paulinho abriu os olhos e deu de cara com um cachorro vira-latas que estava encolhido ao seu lado. O pêlo amarelado e um pouco comprido. Estava todo arrepiado pela água que caiu. Paulinho ficou um tempo olhando para o seu novo companheiro sem saber se deveria correr ou agradar seu vizinho de barranco. Percebeu, pela cara do cão, que ele não era do mal. Sentiu que podia confiar no cachorro. Esticou a mão e o bicho se aproximou lentamente e lambeu as pontas de seus dedos.
— Vou te chamar de Temporal. Isso se não aparecer teu dono. De onde tu veio? Como chegou aqui em cima com toda aquela chuva?
Paulinho, ao falar da chuva, estende o olhar para a vila e sente um grande medo como nunca havia sentido. A água estava cobrindo as casas. Só se enxergavam os telhados. Percebeu, então, que Temporal subiu no morro para fugir da enchente. Ouvia, ao longe, os gritos dos moradores, pedindo e oferecendo ajuda; procurando, entre os escombros se havia alguém perdido; chamando para cima das jangadas de tábuas arrancadas das casas.
— Mãe!... Vem Temporal! Vamos descer.
Temporal relutou em descer o morro. Não queria se meter no meio da água. Penou muito para escapar e agora estava ali, prestes a voltar. Andava de um lado para outro sem coragem de descer o barranco que dava para o caminho. Paulinho subiu e pegou-o no colo. Desceu a ladeira com toda a experiência de já ter buscado mais de vinte bolas lá embaixo.
Quanto mais se aproximava da enchente, os gritos iam aumentando. O desespero das pessoas ia ficando cada vez mais assustador. Paulinho tentou entrar na rua onde morava, mas não conseguiu. A água estava na altura de seu peito e, de repente, lhe veio à boca. Com muita dificuldade e com ajuda de Temporal, conseguiu voltar para a parte rasa. Olhava para todos os lados, buscando enxergar um caminho que desse pé para chegar à sua casa. Gritava por sua mãe, mas seu grito pequeno de criança se perdia no meio de tanta lamúria. Uma moça ia passando apoiada em uma porta de casa que boiava no grande rio, que se transformou a rua principal do vilarejo. Chamou Paulinho para que subisse na porta, agora barco. Paulinho jogou Temporal em cima da porta e tentou subir. Mas, quando se apoiou, a moça tentou ajudá-lo e o peso dos dois emborcou a porta derrubando Temporal e tirando as chances de Paulinho sair dali.
Ao lado, assistindo a tudo, estava uma mãe, abraçada a uma guriazinha de três anos, que tremia feito vara verde. Enrolada apenas em um cobertor totalmente encharcado. A guria repetia freneticamente, “mamãe, mamãe, mamãe” e a pobre mãe, sem saber o que fazer, apenas acariciava a cabeça de sua filha. Com as lágrimas caindo sobre os cabelos molhados da pequena.
Paulinho buscou um barranco um pouco mais alto e sentou-se. Ficou observando o que acontecia à sua volta e pedia, em silêncio, sem saber a quem, para que sua mãe estivesse bem. Levantou os olhos, enxergou seu Tomé, do mercado, e gritou com todos os seus pulmões. Seu Tomé estava empurrando um estrado com duas senhoras de muita idade e algumas crianças de colo dentro. A água estava na altura de seu pescoço. Mas seu Tomé não se importava com os goles que, de vez em quando, tinha que tomar em sua empreitada. Gritava para todos, para que fizessem o mesmo.
— Tem mais estrados no mercado. Peguem o que for preciso, mas socorram os velhos e as crianças. Vamos levar para a parte mais alta.
A parte mais alta era onde estava Paulinho. Diante do que ouviu, ficou quieto esperando. Logo em seguida, chegou seu Tomé para descarregar seu estrado.
— Seu Tomé! O senhor viu minha mãe?
Seu Tomé olhou para o rosto de Paulinho, sujo e apavorado.
— Como é que tu chegou aqui, guri? Tua mãe está do outro lado. Ela está bem. Mas tu não pode sair daqui. Pelo menos por enquanto. Fica aqui, que tenho que buscar mais pessoas que estão ilhadas nos telhados das casas.
Seu Tomé empurrava o estrado até certa altura da rua e ajudava outras pessoas, que remavam até o local mais baixo, onde os moradores estavam nos telhados aguardando ajuda sempre gritando e organizando a ação das pessoas.
Temporal late muito em direção aos escombros que passam flutuando na correnteza. Paulinho tenta acalmá-lo, mas o bicho está muito inquieto. Temporal escapa das mãos de Paulinho e avança em direção a um amontoado de tabuas e tecidos que flutuam até ficarem presos a um poste. Temporal não pára de latir, atira-se na água e nada até os escombros. Sobe no monte retorcido e mete a cabeça em meio às tábuas. Paulinho assiste a tudo ansioso, Temporal puxa uma trouxa e se ouve o choro fraco de um bebê. Paulinho grita desesperado para todos os que estão à sua volta.
— Tem um bebê ali, tem um bebê ali. Moço! Tem um bebê ali.
Puxa a camisa de um senhor que está ajudando a recolher as pessoas idosas. O homem corre até os escombros e, com a água acima da cintura, vai até onde está Temporal. Com aquele movimento e a gritaria de Paulinho, vieram outras pessoas para ajudar. Logo eram mais de seis em volta do monte de entulhos. Uma senhora sai com a criança nos braços e a coloca no chão, ao lado de Paulinho, para desenrolar os lençóis que estavam quase sufocando o bebê. Ao desenrolar o bebê, Paulinho reconhece o irmão de Zeca Chinelo. Dá um salto e corre para os escombros. Tenta entrar na água gritando Zeca! Zeca! Zeca! Temporal continua latindo e fuçando o monte de entulhos. Late e levanta a cabeça olhando para Paulinho que está quase se afogando tentando chegar até ele. As pessoas que estavam por ali conseguem chegar até Paulinho e o tiram da água. Um pouco aturdido, ele grita a todos:
— Vocês precisam tirar o Zeca dali! Ele está ali. Tira ele! Tira!
— Calma guri! Do que tu está falando?
— Esse bebê é irmão do Zeca, meu amigo. Acho que aquela é a casa dele. Tira ele de lá.
O homem olha espantado para Paulinho que está olhando fixo na direção dos escombros, quando o homem levanta a cabeça e percebe Temporal correndo em cima das tábuas, latindo sem parar, sai correndo aos gritos.
— Tem mais gente nos escombros. Venham ajudar! Aqui! Aqui!
Logo são dezenas de braços a retirarem as tábuas do meio da água. Paulinho chama Temporal para dar mais espaço às pessoas que, incansavelmente, tiram tábua por tábua que sobraram do que, um dia, foi uma casa.
— Silêncio, silêncio. Ouçam! Tem alguém lá embaixo.
Rapidamente, retiram mais algumas tábuas e percebem uma caixa de isopor flutuando no meio dos escombros. Zeca está com a cabeça dentro da caixa emborcada, onde pôde se manter respirando até que alguém o encontrasse. As tábuas que estavam por cima não permitiam que ele saísse sem ajuda. Paulinho sorria em meio a prantos quando tiraram o amigo e o puseram a salvo fora da água.
— Agradeça ao teu amigo. Ele salvou tua vida.
— Não fui eu. Foi o Temporal.
— Vem cá Temporal. Te devo uma.
— Teu irmão está ali, com aquela senhora. Onde está tua mãe?
— Não sei. Ela saiu para ir ao mercado e eu fiquei com o bebê. Ela demorou demais. Por isso me atrasei para o jogo. Depois começou a chuva e... Foi isso aí.
— Zeca, me ajuda a encontrar minha mãe. Ela está do outro lado.
— Não tem como chegar lá. As pessoas estão vindo de lá para cá, porque lá está muito cheio. Vamos esperar e ficar cuidando quem chega. Ela virá para cá. Vamos esperar.
Paulinho e Zeca Chinelo ficam ao lado da senhora que está com o bebê e se aproximam para se proteger da chuva, agora mais fraca. Paulinho olha em volta. As pessoas estão com suas roupas viradas em farrapos. Os rostos irreconhecíveis por causa da lama. Os adultos gritam, se agitam e recolhem o que podem salvar para que a água não arraste tudo. Uma visão que não sairá mais de sua mente. Avista seu Tomé ao longe, arrastando mais um estrado cheio de gente. Dessa vez, está sendo ajudado por mais dois homens que puxam as cordas enquanto ele empurra. Seu Tomé, grande herói. Quantas pessoas ele tirou da água! Quantas senhoras vão poder abraçar novamente seus netos. Graças ao Seu Tomé, que sequer sabe o nome delas. Mas não importa. É uma vida que precisa ser salva e isso tem que ser feito a qualquer preço. No estrado, estavam as mães de Paulinho e Zeca, que correram emocionadas para dar mais um abraço em seus filhos. A água foi baixando lentamente, enquanto todos esperavam pacientemente sentados na parte mais alta. Os rostos sofridos pelas perdas preparavam-se para enfrentar a lama que estava por vir. Sabiam que teriam muito trabalho pela frente, mas podiam contar uns com os outros. Todos, unidos, sairiam vencedores, seguindo o exemplo de Seu Tomé.

Fim