quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Tirinha da Semana

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A Força do Ser

Vida solta ao vento, Voa coração, A noite é tua companheira, É solidão, O teu chão de hoje, É teu teto final, A noite figura um sonho, E esquece a vida real, Onde estão os velhos amigos? Lembranças tão vagas, Como todo o passado, Vários rostos foram esquecidos, É melhor deixar de lado, Viver, ser feliz de repente, Abrir novos caminhos, Tem que ser pra valer, Em cada passo uma vitória, Aprendiz e herói, Dominando todo o poder, Viver na certeza, De jamais ser vencido, Desvendando caminhos, Colhendo o que foi perdido, Do amor encontrado, Se faz a força do ser, E depois a lembrança, De puro e lindo prazer, Viver de emoção e prazer. Faustino Alves Filho

sexta-feira, 18 de maio de 2012

segunda-feira, 30 de abril de 2012

domingo, 15 de abril de 2012

domingo, 29 de janeiro de 2012

Leitura Gratuita - Conto 5 -Mãe, Maria, Mulher

Mãe, Maria, Mulher

Duas horas da madrugada de nove de junho. Maria de Lourdes se levanta e vai até o outro cômodo onde dormia Juninho, seu único filho, de seis anos de idade. O ar da madrugada de inverno rigoroso lhe arde às narinas, queima a garganta e lhe corta os pulmões. O pequeno barraco de dois cômodos feito com tábuas retiradas do entulho de uma construção que ficava ao lado da favela não continha o ar gelado que vinha da rua. Juninho estava com os pés descobertos. Puxou o pequeno cobertor de lã para cobrir as orelhas e deixou os pés de fora. Durante algum tempo, ele ficou em posição fetal para se cobrir por completo, mas adormeceu e se esticou na cama de papelão que sua mãe fizera no chão, descobrindo os pés.
Ela está acostumada com essa rotina. Juninho sempre se descobre à noite e, no inverno, ela tem que ficar atenta, senão o guri ficava doente e o preço dos remédios estava longe de seu alcance.

Com apenas vinte e três anos, já estava com um filho no colo e uma vida inteira pela frente para encarar sozinha. O pai do guri se mandou assim que soube de sua gravidez. Ela arrumou emprego de faxineira em uma fábrica de papel higiênico que fica a uma hora e quarenta minutos de ônibus de sua casa e ainda teve que encarar as costas de sua família, que não aceitou o fato de ela criar seu filho sem a presença do pai. Defendiam o aborto. Não teve saída, senão ir embora de casa e encarar o que a vida lhe proporcionasse. E isso não era boa coisa.
Já nos primeiros dias, quando estava na casa de uma amiga, recebeu muitas propostas de ajuda de todo o tipo. Mas todas vinham acompanhadas de uma leve retribuição de alguns momentos na cama dos benfeitores. Não teve jeito. Sofreu tudo o que uma pessoa pode agüentar. Grávida, sentiu o peso da humilhação, do preconceito e da fome. Estava em um campo de guerra e tinha que sobreviver sem dar um tiro. Ou se igualaria aos que ela mais repudiava do local.
Com a ajuda de Joana e Carlos, vigia noturno, Maria conseguiu alguns bicos até ganhar seu filho. Joana acolheu mãe e filho até que ela pudesse andar com as próprias pernas.
Um ano depois, Maria conseguiu emprego e renda suficiente para alugar um barraco de dois cômodos na favela onde viviam.

Ela coloca a mão na testa de Juninho e percebe que ele está gelado. O pequeno cobertor já não é mais suficiente para aquecer o guri. Vai até sua cama e pega uma manta que usava como coberta e volta devagar olhando para os poucos móveis usados. As panelas um pouco amassadas e algumas sem tampas em cima do fogão e a pilha de louça suja na pia revelam, incontestavelmente, o padrão de vida que Maria oferece a Juninho. Seus olhos enchem-se de lágrimas. Só Deus sabe o quanto ela queria dar de melhor a ele. Mas é tudo tão difícil. Sem estudo, sem experiência em nada. Só sobra a função que ninguém quer. Limpar a sujeira dos outros.
Levanta-se às cinco horas da madrugada e acorda Juninho para a caminhada matinal até a casa de Joana, que cuida do guri. Corta-lhe o coração ter que acordá-lo àquela hora e encarar o frio da madrugada. Por mais que se agasalhe, nunca é o suficiente. Quando chove, então, é duro de agüentar. Entrega Juninho à Joana e entra no ônibus. Nunca tem lugar para sentar. Vai em pé até a parada da fábrica. Durante dez horas por dia, trabalha limpando corredores, banheiros, vidraças, recolhendo o lixo. Dez horas em pé. Senta apenas para almoçar. Vai para a parada e pega o ônibus de volta para casa. Em pé novamente. Lotado. Pessoas de todos os cheiros se misturam no corredor do coletivo. Alguns até já cheiram a cachaça antes mesmo de chegar em casa. Passa na casa de Joana e pega Juninho. Chega à casa e está na hora de banhar o guri. Ainda não conseguiu escola para Juninho. Torce para que aquele vereador cumpra a promessa de fazer uma escola municipal na vila, pois a única que há na cidade fica a mais de uma hora de caminhada dali. Sem condições.
Faz rapidamente um carreteiro enquanto prepara as coisas para seu banho. Seus calcanhares latejam e ela sente uma fisgada ao lado do dedão do pé. “Já deve ser joanete. Com essa idade?” — pensa. Juninho chega perto da mesa para jantar e já está um pouco encolhido pelo frio que não ameniza. Serve Juninho escolhendo as carnes do arroz amarelado pela gordura. Quase não fica nenhuma carne para ela. Come o arroz amarelo e leva Juninho para a sua cama enquanto ajeita os papelões no chão, cuidando para tapar todas as frestas do assoalho. Ao se deitar, sente a sola de seus pés latejarem. Dá um suspiro e adormece.

Maria acorda às duas e meia da madrugada com a impressão de que os tiros eram dentro de seu quarto. Os tiroteios por ali não eram raros, mas, dessa vez, estavam muito próximos. Normalmente eram na parte baixa da vila. Com os olhos arregalados pelo susto, correu em direção ao Juninho que estava acordado e bastante assustado. Maria pega seu filhote no colo e se abriga em sua cama abraçando o pequeno para protegê-lo. Os tiros não param. Os gritos aumentam. Os vizinhos estão retirando seus parentes das ruas. Ouve ao longe alguém falar em guerra de gangues. Não importa. Maria reza para que pare. Juninho treme tanto de frio quanto de medo.
Amanhece e eles ainda estão na mesma posição, abraçados. Os tiros param de vez em quando. Depois recomeçam, e essa alternância durou a noite toda. Agora ouve sirenes da polícia. Não consegue definir se é melhor ou pior. Às vezes, a polícia é mais bandida que o bandido. Os tiros aumentam e Maria anda abaixada de um lado para outro preparando algo para Juninho comer. Hoje não tem serviço. Não tem escola. Não tem comércio. Todos na região já estão acostumados com essa “zorra”. Dia de tiroteio, pára tudo. O que mais preocupa é bala perdida. Já ouviu muitas histórias e não quer fazer parte dessa estatística.
A manhã passa como se fosse um mês. As sirenes se alternam entre a polícia e a ambulância. Já devem ter mais de dez socorridos. Parece ser uma guerra muito grande. Se for com gangues de outra vila, a coisa vai demorar.
Entra a tarde, e o tiroteio continua. Maria já está com dores nas costas de andar naquela posição dentro de casa. Juninho começa a incomodar. Não tem sossego. Joana entra correndo no barraco para dar a notícia de que estão mandando a polícia de choque para recuperar o morro.
—Recuperar de quem? Quem está aqui é quem sempre esteve. Tudo política. Maria não se conforma com essa maneira de ser tratada. Enquanto os bandidos tentam dominar a área e a polícia tenta fazer política em cima disso, os moradores não conseguem levar suas vidas adiante. Não conseguem trabalhar e seus filhos não conseguem estudar. A vila toda pára em virtude de bandidos e polícia. Os moradores são meros figurantes no teatro político dos homens do poder.
Joana fica no barraco de Maria enquanto Carlos não chega. O turno de Carlos é o da noite. Quando soube do tiroteio, Carlos ficou na casa de seu irmão, fora da vila. Já era o combinado entre o casal. Joana estava muito nervosa com tanto bandido e polícia passando bem na porta dos barracos vizinhos. Era a primeira vez que a violência chegava até ali. Era assustador ver homens correndo de um lado para o outro com armas pesadas nas mãos. Alguns feridos. Sangrando e sendo carregado pelos companheiros de boca. Os gritos de ordem e o cheiro de maconha que ficava no ar não sairiam mais da lembrança das pessoas de bem.
Maria arrisca dar uma espiada no que está acontecendo. Chega até a janela e se abaixa para não ser vista e para se proteger atrás das tábuas. Seu barraco fica em cima de um barranco. Uns três metros mais alto que a rua. A visão que tem é assustadora. Algumas das pessoas que estão correndo lá fora com armas nas mãos são moradores do local, que pegam o mesmo ônibus que ela. Não acredita no que vê. Ao mesmo tempo, não se define quem é bandido e quem é morador honesto protegendo sua família. Tem a impressão de estar vendo uma caçada onde a caça e o caçador são humanos. Gente se refugiando onde podem. Nos olhos, um misto de expectativa e medo de ser morto. Mesmo o pior bandido tem medo de ser morto. Absorve-se nas imagens aterrorizantes que vê e não percebe um vulto que se aproxima olhando fixo para cima.
O homem se aproxima do barranco e sobe pelo lado dos arbustos, sem ser visto. Anda se esgueirando pela borda do barranco onde está a janela em que Maria assiste ao tiroteio. Quando ela percebe, é surpreendida pelo homem que se levanta debaixo de sua janela. Os olhos esbugalhados pela droga e o fuzil em posição de ataque revelam imediatamente suas intenções. Dá um salto para trás e busca com os olhos Joana e Juninho. O homem entra pela janela sem baixar a arma fazendo sinal de silêncio com o dedo na boca. Joana sente o movimento e sai para ver o que está acontecendo. Entra no cômodo chamando por Maria e é recepcionada com a arma em sua cabeça. Juninho está na cama de sua mãe, que faz sinal para ele ficar lá em silêncio. O guri não se mexe de medo do bandido. Assiste a tudo com os olhos arregalados. Joana dá um passo para o lado e busca olhar o bandido no rosto. Ele tenta desviar o rosto, mas não consegue. É reconhecido por ela, que grita seu nome e entra em luta com o bandido. Maria sente o perigo que se estabelecera em seu barraco, corre para o quarto e pega Juninho no colo saindo em disparada porta a fora enquanto a amiga se debate com o bandido.
Não percebe como desceu a escada do barranco. Mas, quando se dá conta, já está lá embaixo, na rua. Solta Juninho para uma conhecida que está passando e volta correndo para ajudar Joana, torcendo para ainda dar tempo. Quando leva a mão na tramela da porta, ouve um tiro e congela. Fica imóvel tentando ouvir, em vã esperança, a voz da amiga. A porta se abre e o bandido passa, calmamente, ao seu lado. Andando como se não tivesse acontecido nada. Ela percebe em seu rosto um leve sorriso e, ao baixar os olhos, vê as mãos do bandido sujas de sangue. Acompanha seus passos até ele atravessar a rua e correr em direção ao bosque, que fica atrás da vila. Só então, volta à realidade e seu coração dispara. Corre para dentro do casebre e encontra Joana deitada, ferida mortalmente na altura do peito.
Maria desce as escadas do barranco com a impressão de que a vida não vale a pena. Por mais que se lute, por mais que se tente viver dignamente, sempre tem uma situação avessa que nos torna incapaz. Seres totalmente descartáveis de nossa sociedade. Maria nunca entendeu essa palavra “sociedade” denominando um grupo de pessoas estranhas com objetivos distintos e muitas vezes conflitantes. Mortalmente conflitantes. Isso é sociedade? Para ela isso é um bando de qualquer coisa. Não um grupo de pessoas. Em cada passo, cada degrau que desce, ela lembra um pedaço de sua vida e do esforço de Joana para que ela voltasse a sorrir, após todo o sofrimento pelo qual passou. Da luta da amiga que culminou em sua morte e que permitiu a fuga dos dois. Joana foi protetora até o fim. Não podia terminar assim.
Pára ao lado da rua, na calçada. Ainda passam alguns homens correndo seminus, com armas em punho. Grita a todo o pulmão para que parem. Parem com aquela barbárie. Parem com aquela matança. Parem com essa violência que agride crianças que nem entendem o que está acontecendo. Parem de se matar. Parem de se matar. Enquanto grita, puxa Juninho para si que se agarra às suas pernas e com expressão horrorizada, tenta, em vão, entender o que está acontecendo. Ela pega a criança no colo e sai correndo em direção à Igreja, na esperança de encontrar abrigo seguro, pois sua casa já não é mais. A cabeça de Maria ferve com todos os acontecimentos e lembranças das dificuldades de sua vida. Enquanto corre, suas lágrimas deixam marcas na terra dura, socada por milhares de pés descalços que buscam ganhar a vida e andam para todo lado na esperança de conseguir a próxima refeição. Marcas que não chegam nem a serem percebidas e se evaporam. Como muitos de nós. A história registra o nome de poucos e a maioria se projeta em dias como o de hoje. Dias de fúria, de tiroteios e de mortes. Muitos morrem e não são lembrados, mas sempre tem um “herói” que surge do nada e leva fama, construindo sua vida em cima de tantas mortes.
O tiroteio recomeça, e Maria não encontra abrigo nas calçadas entrecortadas por cercas. Avista um casal que se encolhe do outro lado da rua embaixo de um abrigo de metal, aparentemente seguro. O casal acena para ela chamando para junto deles. Ela não sabe o que fazer, pois no abrigo tem lugar para apenas um deles. Olha para um lado e vê a polícia chegando. Olha para o outro e, embora não veja ninguém, sabe que está tomado de bandido. Sem perceber alternativa, corre para o outro lado da rua e deixa Juninho com o casal enquanto procura outro lugar para se abrigar. Atravessa a rua e se deita no chão, ao lado de uma cerca de sarrafos. Do outro lado da cerca, uma guria está deitada com o rosto espremido contra o chão tentando não ser atingida pelas balas. O rosto dela tem marcas de lágrimas que formam trilhos na terra vermelha que cobre sua face.
Polícia de um lado, bandidos do outro e a população esmagada entre eles. Indefesa entre eles. Indefesa ante eles. Maria não consegue se levantar. As balas passam perto de sua cabeça e atingem os sarrafos da cerca e as tábuas do casebre ao lado. Ela olha, preocupada, Juninho do outro lado da rua. Ele grita algo, mas ela não consegue ouvir. Os estampidos são ensurdecedores. Ele chora e fala algo que ela entende muito bem, embora não ouça. “Mamãe, mamãe.” Sente vontade de sair em socorro de seu filhote, mas os tiros não param. Ela vê a senhora que está com Juninho puxá-lo contra si para protegê-lo e fica mais tranqüila.
Vira de costas para o chão e fica observando as nuvens. O céu está lindo. Como no dia em que foi para o hospital dar à luz. O dia mais feliz de sua vida. Nunca mais esqueceu a cor do céu. Sempre que via algo azul, lembrava o céu do dia do nascimento de Juninho. Pena a vida não ser assim, tão azul. Tão clara. Tão linda.
Embora endurecida pela vida que levou até agora, não resiste e chora convulsivamente. O que fazer? Não pode continuar à mercê dos bandidos e da polícia. Não pode continuar vivendo uma vida sem futuro. Como sair toda manhã para trabalhar e deixar seu filho sem saber se o encontrará em casa quando voltar no final do dia? Sabia que não era a única. Não entendia como as pessoas que viviam ali há mais tempo podiam viver daquela forma. Enterravam seus familiares mortos em tiroteios e, no outro dia, continuavam suas vidas como se nada tivesse acontecido. Maria não sabia ser assim. Ela queria algo melhor para seu filho e para si. Pretendia estudar, sair daquela vida de “limpeza”, matricular Juninho em uma escola decente. Chegava a sonhar com Juninho se formando em alguma universidade. Mas, para isso, precisava sair dali. Tentar a vida em outro local. Menos violento. Com menos drogas batendo à sua porta. Com mais chances de Juninho chegar à vida adulta de uma forma honesta, sem muitos riscos.
Ouve estalos de madeira e metal se partindo com os tiros. Seu coração dispara. Olha para o outro lado da rua e assiste ao casal ser atingido por dois, três disparos. Juninho está agachado atrás deles. Maria não consegue raciocinar. Em um impulso, levanta-se para ir ao encontro ao seu filho, mas uma bala atinge a cerca e ela se deita novamente. Grita para que Juninho fique deitado onde está, atrás do corpo da senhora que estava com ele. Juninho obedece e se encolhe no canto do pequeno abrigo. Outra bala atinge as costas da senhora, agora escudo de Juninho. O guri chora e chama a mãe, que não pode atender. Olha em volta as pessoas gritando, correndo. Seus colegas de rua sendo arrastados pelas mães que buscam abrigo. Ao seu lado, o casal sangra sem parar. Juninho não sabe de onde sai tanto sangue. Mas sabe que a vida está ali, secando na areia vermelha.
Ele se levanta e vai ao encontro da mãe. Precisa dela. Não é ninguém sem sua santa protetora. Precisa de seu abraço. Do calor de seu colo. De seu cheiro. Pára na beira da rua gritando, chorando. Não consegue dar mais nenhum passo. Fica paralisado com as pernas trêmulas. Maria, perplexa, assiste àquilo tudo. Não quer acreditar que seu único filho está ali, à mercê das balas que passam como mensageiras da morte voando para todo lado. De peito aberto à frente das armas, ela corre. Tenta atravessar a rua. Do outro lado, Juninho estende os pequenos braços chamando sua mãe. Os gritos de “perdeu” passam pelos ouvidos de Maria sem muita importância. Àquelas alturas, o mundo se transforma em um corredor de meio metro. Nada mais existe a não ser ela, a rua a ser transposta e a criança assustada com todo aquele barulho.
Ela corre sem pensar no risco, lança-se com velocidade anormal, gritando para o mundo que parem, seu filho está ali, exposto à crueldade de pessoas que não sabem que a vida de uma criança vale a vida de uma mãe. Mãe que cai de braços estendidos após três passos. Juninho não percebe o que aconteceu e de braços estendidos continua a esperar que sua heroína se levante. Isso não acontece. Então só resta sentar nos calcanhares de chinelos de dedos velhos e esperar que as lágrimas parem junto com os estampidos; que sua Mãe se levante e que venha como uma santa protege-lo pelo resto de sua vida.

(...) Nada parece ser grande o suficiente quando se quer dizer ou escrever algo sobre Mães. As razões que levam mulheres comuns a passar o que passam para manter um filho vivo, estão acima do amor. Acima da compreensão humana.
Que valor teria para os deuses o sono perdido de uma mãe ao cobrir o corpo gélido de uma criança faminta, usando apenas um trapo como coberto, escolhendo em que lugar da casa coloca a criança para fugir das goteiras.
Que valor teria para a humanidade uma mulher que, no frio do inverno, sob a neblina gelada da madrugada, leva o filho de colo apertado ao seu peito para mantê-lo aquecido, até chegar à casa da bondosa vizinha e, então, entregá-lo junto com um pacote de bolacha sortida para poder ir, de coração apertado, para mais um dia de trabalho, com o coração machucado pela falta de alternativas. Mas é preciso. Com um suspiro de conformação, entra no ônibus e segue por mais de uma hora, em pé, para ganhar um salário mínimo limpando o lixo dos doutores da nossa economia.
Penso na minha Mãe. Nas noites em que eu acordava encolhido de frio. Ela vinha só de camisola e chambre, de mãos geladas arrumar a coberta rala que escorregou de cima do colchão e eu, no meu sono de fome, não havia percebido. Ela sabia que isso aconteceria. Então, sistematicamente, fazia a ronda noturna das Mães cobrindo os filhos que se destapam no inverno. Com as pontas dos dedos gelados que tocavam meu pescoço, ela ia de cama em cama, verificando se suas crias não estavam sob os perigos do frio.
Lembro-me de minha Mãe retirando da panela apenas o arroz do carreteiro, servindo bem menos do que precisava para se manter ativa em sua luta diária para nos manter em pé. Deixava a pouca carne que coloria o arroz de um amarelo estranho de gordura para os filhos. As mães sempre acham que os filhos devem se alimentar melhor. Abrem mão de muitas coisas por eles. E a nós, filhos, ainda há o resto de nossas vidas para abrir o coração e dizer que o amor que temos por elas nunca será o suficiente para comparar ao amor que elas nos têm. Mas podemos dar o máximo de nossas vidas para justificar a vida que delas se desprendeu para que estivéssemos aqui.


Fim